quarta-feira, 16 de abril de 2014

o PESCADOR (Relato seis

53 (RELATO SEIS)  Manhã Azeda ou Alguns princípios performáticos – cotidianos: 

Estava eu na parada de ônibus, numa dessas manhãs cedinho, onde os ossos estão quasecongelando e a chuva fina, associada ao trânsito barulhento e à abundancia de sono e decimento no cenário, resultam num mau-humor crescente. Ou numa manhã azeda. Retiro o celular do bolso, ele é meu olho-mobil, um órgão eletrônico, um olho fora docrânio, que me possibilita ver, por suas lentes de baixa resolução, o mundo. Mas pra queeu quero um olho de baixa resolução se eu sou dotado de dois olhos biológicos que funcionam relativamente bem associados aos óculos e enxergam tudo em alta resolução, eem três dimensões, e etc? Muito bem, por que eu não posso enfiar o dedo na cavidadeocular e retirar de lá a bolota da visão. Por que dentro da cabeça o olho se acostumou aver sem se perguntar por que vê e o que vê? Porque sua atualização em imagem nocérebro é quase automática, imprimindo um estatuto de real a tudo que vê, tornandocotidiano qualquer coisa, situação, mesmo que esta se torne presente em um desconfortointenso. Porque estou com sono e os carros se atravancam na paisagem de cimento easfalto e a chuva fina cai numa manhã gelada do inverno em Porto Alegre.Começo a olhar pela câmera do celular, eu transformo meus dois olhos no olho singular que seguro com a mão, o olho-mobil, e começo a re-ver toda a situação que naquelemomento eu me encontrava.-Não existe nada de bonito aqui, todo mundo tossindo e encarangado, luz cinzenta, chuva fina. Não tem nem o que eu possa fotografar. Viro-me. Atrás da parada de ônibus um prédio enorme desses colossais de vidro espelhado e revestimentos pétreos em formado decaixa. – QUANTA FEIURA! 

 54 Começo a fotografar a fachada do prédio que no nível da rua se apresenta como um nichode vidro e cortinas de escritório, dessas que cortam a imagem em barras verticais. Pois alihá um banco, atrás daqueles vidros tem gente trabalhando, tem dinheiro correndo. Percebo então que por trás do vidro e das cortinas está um homenzarrão todouniformizado como se fosse um “comandos em ação”, me olhando com uma cara que eu poderia adjetivar como tudo, menos simpática. Continuo fotografando e olhando, oumelhor, re-olhando, pois ao tirar o olho da cabeça e o segurar com a mão eu vejo a visão,eu re-olho com meu re-olho, o olho-mobil.Vindo das tripas daquela instituição financeira, aparece outro personagem, desta vez umhomem gordo e mais velho, de camisa e gravata que gesticula para mim atrás do vidrocomo que dizendo pare! Pare! É proibido! Não pode! E eu gesticulo em resposta dizendo pode sim, olha aqui, já tirei várias fotos! Eu estava especialmente enfrentativo naquelamanhã.Continuo olhando para o banco e para a situação. Uma ação minha havia detonado uma série de outras ações. Por surpresa, surge um terceiro personagem naquela vitrine, umhomem magro de gravata e camisa que retira do bolso seu próprio celular e começa a me fotografar. Nesse momento meu mau humor já tinha se transformado em prazer sádico, e sendo agora, de fato, alvo de outro olho-mobil prontamente comecei a posar para ohomem por detrás do vidro e das cortinas, e da instituição. Me agarrei na parada como seestivesse ao lado de uma palmeira numa praia na beira do mar. Ele continuou fotografando. Botei meu olho-mobil na altura da braguilha e balancei o artefato para ohomem que me fotografava, chegou meu ônibus e embarquei.Você deve estar perguntando que diabos este relato está fazendo aqui. Vou contar. Muitasvezes as minhas sinapses mais interessantes sobre certos assuntos me assaltam na rua. Através desta experiência eu consegui conversar comigo mesmo sobre a capacidade deuma ação performática, revelar e pôr em movimento toda uma série de comportamentosinvisíveis, congelados, normatizados e naturalizados no cotidiano. Relações de poder foram reveladas, criticadas e ironizadas pelo decorrer da ação.

Comecei a pensar que as 55 vezes o performer age como um pescador. Uma pequena ação pode ser um anzol lançadono oceano da vida cotidiana. As vezes um pequeno anzol é capaz de trazer à superfície umtubarão. Vejamos bem: estava em um campo delimitado por uma série de convenções ecomportamentos pré-estabelecidos (um banco não pode ser observado, ao mesmo tempoque nos observa com suas câmeras de segurança, e nos esquadrinha e regula pelo controledo fluxo de dinheiro), praticamente invisível em sua característica de coerção, proibição econtrole. A ação, sem querer, revelou alguma coisa, uma teia de comportamentosinterligados que envolveram o público e o privado, o status do “olhar” como ação potente,a relação de medo, desconfiança e velada violência que media o espaço entre a instituiçãoe o cidadão. A ação deslocou meu olhar e o do outro para um espaço critico, experimental. Eu e o outro somos “revelados” pelo comportamento performático. Vou me apurar um pouco aqui, pois quando chegar na hora, nós poderemos lembrar disso, mas, pensando por analogia, eu e o banco podemos formar um “corpo”. Estamos em relação, ligados por “órgãos” ou “funções”, geralmente não perceptíveis, condutas, comportamentosinteriorizados e naturalizados que fazem com que este corpo funcione sem perturbações. Ode fora está fora, o de dentro está guardado, as relações de fluxo monetário e status quoestão garantidas. Minha ação sutilmente perturbou o funcionamento destes órgãos, elarevelou algo como os produtos químicos que em contato com o papel fotográfico marcado pela luz revelam uma imagem. Ao mesmo tempo posso pensar no caráter meditativo destaação, pois ela criou um espaço crítico, de reflexão. Como posso falar experiências dessanatureza? E se ao invés da rua e do banco, eu fosse um diretor de teatro, se meu olho-mobil apontasse para o meu próprio crânio? E para o teatro? Se eu fosse um pintor e essaação reverberasse no meu fazer? Estou, com esse pequeno relato, já convidando o leitor aotipo de processo reflexivo que está em processo aqui. O Corpo sem Órgãos, como veremosmais tarde, pode assumir comportamentos complementares, sendo tanto um “programaexperimental” ou uma “metáfora de trabalho”, pois pode acionar comportamentosexperimentais-criativos, quando um “conceito”, sendo capaz de servir para refletir e problematizar questões inerentes à sua própria prática. Mas isso será aprofundado maistarde. Agora estamos entrando devagarzinho na complexidade destas questões.

JDR IN

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